domingo, 28 de dezembro de 2008

O som sagrado *

Pensar a cultura brasileira é uma tarefa árdua. O mais difícil é ir condensando-a até um denominador comum entre Amazônia e Rio Grande do Sul. Tarefa ingrata esta. Mas algo é certo: a mesma África que deu as batidas para os ritmos caribenhos, nos trouxe o calipso, o axé, o samba e por aí vai.

Identidade, esta palavra ampla e tão vezes desconexa, pode dar a pista ao que procuramos, ou não. Veremos. Porque, um não-brasileiro pode tentar sambar toda a vida e não conseguir, e irá achar a falta de molejo algo exótico. O brasileiro que não sabe sambar se sente mal, um deslocado em seu país. Mais que isto, só quem é brasileiro, mas tupiniquim de verdade, sabe do orgulho que é ouvir Garota de Ipanema em Nova York, ou em alguma cidade interiorana do Paquistão. Think about it.


Tente ouvir “Água de chuva no mar” na voz de Beth Carvalho sem sentir o pé marcando o bumbo e as mãos num compasso afiado. Tente ouvir “Canto de Ossanha” e, logo em seguida, afirmar que você é branco, completamente caucasiano. Não dá. Tente ouvir “Maricotinha”, de Caymmi, sem sentir uma melancolia gostosa, a melancolia verde amarela, a utopia que não veio. Tente cantar “Chega de Saudade” imitando a prosódia de João Gilberto, mas só tente. Tente sambar, simplesmente. Tente fazer um samba. Tente ser Cartola, ser o Belo, por que não? Tente ouvir “Construção”, de você-sabe-quem, sem sentir vontade de fazer a vida valer à pena de fato, sem perder nenhum minuto no marasmo imbecil que é a vida de todo operário, e todos somos operários. Tente sambar, simplesmente. Tente ir ao Sambódromo e ver a terra tremer com o estandarte da Estação Primeira sem se tornar mangueirense ou adotá-la como segunda escola. Tente ouvir pagode sem preconceito, e se conseguir marcar definitivamente onde termina o pagode e começa o samba, me avise, ficarei feliz em saber da sua genialidade musical. O mesmo com a bossa-nova e vá demarcando. Tente ouvir “Águas de Março” e depois tente dizer: é jazz, é jazz, não é samba, não é samba. Tente ouvir Marcelo D2 sem refletir sobre o que é Brasil, sobre o que é nossa música. Tente ouvir Roberta Sá sem pensar: o samba está em boas mãos. Tente sambar, simplesmente.
Se não conseguir fazer metade do que propus, ainda há tempo. Se nunca pensou em nenhuma delas, você é - como diria Kipling - um idiota, meu filho.

*Coluna dedicada ao vigésimo aniversário de Carolina Borges, minha luz.

(Guilherme de Carvalho)

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Cariocas não gostam de dias nublados

Não pára de chover no Rio. Há algo estranho,vão dizer que é o aquecimento global, pois el niño já está fora da moda tem um tempo. Não pára de cair água por todos os lados, em todos os lugares, o Brasil súbito parece estar se transformando num país que só chove. Que explicação? Nenhuma, querido leitor, machadianamente falando.

A cidade (leia-se trânsito) vira e mexe já parava em alguns trechos conhecidos dos cariocas. Agora ela pára por completo. Pode ser o movimento de compras natalinas (salve Lula!), mas acredito mesmo na visão de que o Rio está chegando ao seu limite transitório. Primeiro, porque toda a estrutura arquitetônica da cidade foi feita exclusivamente para dias ensolarados. Segundo, porque a organização das ruas nunca foi pensada, resultando no caos urbano em que estamos atolados até o pescoço. É muita ruazinha e muito carro. Choveu, meu filho, dá merda.

Carioca é aquele tipo de gente que pensa em faltar compromisso porque está chovendo. Acorda, olha pela janela aquela chuvinha gelada e pensa: ah, acho que estou doente. Carioca é o sujeito que mede a chuva. Gotinha nível um, nível dois, nível três, nível quatro... enchente, desabamento de encostas. Carioca é daqueles que pensa que se pode tirar bom proveito de engarrafamento: ah, pelo menos tô admirando a Lagoa! Carioca é um tipo humano que em pleno século XXI acha que o sol tem humor. “O sol ta se escondendo hoje”, “Ih, o sol ta alegre, vistoso...”, ser carioca é padecer no paraíso.

Olha, quem é carioca sabe, chuva, seja ela qual for, dói e é gelada. Carioca que é carioca não tem casaco. Fica sempre naquela de “tenho que comprar um casaquinho pro inverno”. Que inverno, imbecil? Esse inverno nunca chega. Mas pelo andar da carruagem de dezembro de 2008, acho que a coisa está ficando braba. Minhas espinhas doem com o frio. Vinte e dois graus já é calamidade pública, ou, como dizem por aí, é o mundo se acabando.

Sem mais delongas, me despeço. Tenho que sair e adivinhe... Está chovendo. Acho que estou doente. Um guarda-chuva e adeus.
(Guilherme de Carvalho)

sábado, 13 de dezembro de 2008

O dia que o Brasil invadiu a Argentina

Derrubaram a estátua esculpida em pedra do Maradona, oras, foi a primeira atitude. Picharam a casa rosada com os dizeres: perderam as Malvinas, abaixo a Argentina! Quebraram todas as casas de tango e instalaram quadras de escolas de samba baseadas num jogo argentino de apostas em animais, um jogo desconhecido dos brasileiros. Depredaram as escolas, pensaram: há muita gente estudando aqui nesta bosta! Depois foram coisas menores... Obrigaram aos jovens argentinos a leitura do livro de catecismo, trocaram peso por real, abriram mais quinhentos e cinqüenta e sete mil novos botequinhos, implantaram mais treze feriados nacionais (mais nove só para Buenos Aires), entre outras cositas mais (bife de chouriço virou “picanha”).

Depois, teríamos de pensar, afinal, que para transformar outro país no Brasil, consistiria preliminarmente em pensarmos o que (por favor, alguém me ajude agora) tornou o país verde-amarelo no que é hoje. O que quer dizer: para que a Argentina seja o Brasil é preciso fazer o quê? O que quer dizer, na verdade: para que o Brasil seja a Argentina que seja o Brasil é necessário o quê? Complicado, mas coerente. Explico. Troco um novo parágrafo por uma vaga de suplente no senado. Feito. Vamos lá...

A começar pela bandeira, tudo errado. Coisa mais carnavalesca que cismam em nos dizer que significa verde das matas, azul do céu, amarelo do ouro, branco da paz ( essa é ótima!) e ordem e progresso de... ordem e progresso, piada com fim em si mesma. Hino: aula de sintaxe. Quem entendeu já morreu e quem não entendeu, ficou sem entender. Guerras? Um genocídio no Paraguai (coisa de valente, brava gente brasileira) e alguns levantes dentro do território, mas todos esmagados. – Guerras da época colonial não valem, pois as mesmas eram resolvidas por portugueses, como queremos demonstrar – A Argentina, no mínimo, se levantou contra a Inglaterra em 1982. Já a brava gente brasileira, comprou a Independência, comprou o Acre (entre outros pedaços), comprou escravo, comprou a família real, comprou a queda da ditadura militar e só não comprou a língua portuguesa porque esta nos foi dada. A ditadura militar brasileira torturou sem piedade como a argentina, mas não só a esquerda lá era mais ousada e numerosa como as forças armadas eram mais valentes. Já o exército brasileiro... “Braço forte, mão amiga.”

Sem querer comparar, longe de mim, mas se meu texto não é patriótico, vamos à definição de patriotismo para as duas nacionalidades. Para o argentino, patriotismo é: se não estiver bom, um milhão na rua fazendo panelaço e quebrando tudo em Buenos Aires. Para o brasileiro: votar consciente (?) e saber a data do próximo amistoso da seleção brasileira de futebol, que ao contrário do que muitos pensam NÃO é uma instituição oficial, mas a empresa particular das famílias Teixeira, Havelange e Marinho. E está dito.

E capital? Parágrafo curto: quem mora em Brasília? Quantos sobreviveram à Cruzada de ir até lá protestar?

Poderíamos ir mais longe, tocando a ferida com o dedo encardido e sal grosso. Mas melhor não humilhar, só lançar a sementinha do mal. Sou brasileiro, infelizmente; tenho de carregar esta cruz (que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim carregava até no nome). O que quero dizer de maneira rasa e chula é: antes de xingarmos os argentinos, melhor pensarmos se somos superiores, se temos moral para isso. Refletir também sobre o porquê de não quererem que gostemos deles, sequer nos inspirarmos. E é com o coração apertado que deixo esta crônica. Um piparote e adeus.

(Guilherme de Carvalho)
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"Ser valente é muito mais fácil do que ser homem".
(Julio Cortázar – Escritor argentino)

"Há no PT
a idéia de que ou você é petista ou é calhorda, assim como o PSDB acha que você ou é tucano ou é burro".
(Chico Buarque – artista faz-tudo genial brasileiro)

sábado, 6 de dezembro de 2008

Um estrangeiro

Que vontade de sair andando por aí com Dostoievski, em russo, debaixo do braço, para que perguntem: você sabe russo? Ah, sei ler um pouco. Todo mundo iria ficar com aquela carinha de bunda como quem diz “nossa, que culto.” Mas eu explicaria: entendo russo porque meu pai era militante do partido comunista e foi ajudá-los no desmonte do regime em 1991, e lá morei até 1996. Fui alfabetizado nas duas línguas. Seria engraçado, eu riria por dentro.

Ler húngaro, talvez. Depois de ler Budapeste, do Chico Buarque, você quer mesmo é aprender húngaro e escrever um poema no corpo da amada. Ver o país pelo Google Earth não é a mesma coisa que visitá-lo. Que autor eu leria em húngaro? Não conheço nenhum. Quem aprende húngaro lê tcheco, ou não tem nada a ver? Porque senão dá pra ler o Kafka. Daí eu poderei andar com O Processo e dizer que leio tcheco através do húngaro, mas que acho russo mais difícil.

Aprender francês para ler O Estrangeiro, de Camus, parece ser uma escolha acertada (quando digo aprender, quero dizer carregar o livro). Será que o sr. Mersault é o mesmo em todas as línguas? O sol do livro é mais quente quando se mora no Brasil? E se eu souber espanhol? Será que o García Márquez me fará chorar de novo, ou a tradução do Eric Nepomuceno é que me trazia as lágrimas?

Juro. Se aprendo o espanhol, parto para o basco, que é a língua dos sonhos de qualquer louco. Não, não conheço nenhum autor basco, mas posso procurar. Ou mandar fazer uma camisa escrita “eskerrik asko”, “ez dago zergatik”, que simplesmente significa (juro), respectivamente, “muito obrigado” e “de nada”. Se me perguntarem o que está escrito, mudo de assunto. Posso afirmar que são dizeres de uma seita secreta e que se eu disser, a pessoa corre risco de vida.

Mas a pior de todas as hipóteses é: o que não consigo ler mesmo, não importa o esforço, é o tal do Guimarães Rosa. Que língua secreta é mesmo essa em que ele se debruça? Húngaro? Russo? Romeno? Disseram-me que é português, português de verdade. A partir daí o que fica claro é que não sei a minha própria língua. Não falo língua nenhuma. Entro num shopping e falo inglês, aprendi com os filmes. Mas no caixa, com a menina e a registradora, sai um som estranho da minha boca. Sou culto, carrego livros, não os leio, ligo o computador e a internet e não estou perdido. Mas aquela Gramática do Português, ainda não decifrei. Não sei que língua falo. Sou um estrangeiro em minha língua. Mas já estou me parecendo com o sr. Mersault, e essa é outra história...
(Guilherme de Carvalho)