quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Na crise, nada como alguns condicionais*

*de Roberto DaMatta, publicado em O Globo em 26/11/2008:

E se o nariz de Cleópatra fosse menor? E se você tivesse sido aprovado no exame da Escola Militar? E se Bentinho tivesse estudado em Harvard? E se os economistas realmente entendessem a crise? E se as leis fossem honradas? E se os holandeses tivessem colonizado o Brasil? E se a sua mulher tivesse tido um caso com aquele carinha de costeleta e bigodinho, metido a cantar boleros? E se o Diabo que você viu naquela madrugada, aos dez anos, aparecesse de novo? E se Papai Noel existisse? E se você fosse negro, gay e judeu? Ou uma loura gostosa? E se Maomé tivesse se convertido ao cristianismo?

E se o Positivismo de Augusto Comte não tivesse sido tão popular no Brasil? E se você tivesse ficado perdido para sempre naquele parque de diversões? E se o navio de Darwin tivesse naufragado a caminho das Ilhas Galápagos? E se o avião tivesse caído? E se você não fosse tão invejoso? E se não houvessem mulatos, morenos, pardos, cabo-verdes, mamelucos, cafuzos, curibocas, mestiços, morenos puxados, roxinhos, neguinhos, brancos-baianos e escurinhos no cenário das peles nacionais? E se Oliveira Vianna tivesse lido Émile Durkheim? E se não existissem titias e babás? E se não existisse o ´mais ou menos´? E se aquele índio tivesse deixado você no meio do mato? E se você não tivesse tido aquele professor? E se o barão de Drummond não tivesse inventado o jogo do bicho?

E se não existissem doenças incuráveis? E se Ary Barroso não tivesse feito Aquarela do Brasil? E se os jornalistas brasileiros não tivessem lido H.L. Mencken? E se não tivéssemos carnaval e procissões? E se não houvessem compadres e amigos do coração? E se Gilberto Freyre tivesse estudado na USP e o Florestan Fernandes fosse pernambucano?

E não existisse o Plano Real? E se você não tivesse escrito aquela carta e enviado ao ministério aquela lista? E se não existisse esmola? E se acabássemos com a arrogância? E se os adultos da sua casa não lhe tivessem enxotado quando falavam de sexo? E se a crise nos tornar ricos e os Estados Unidos pobres? E se as mulheres fossem feias? E se o Diabo fundasse uma igreja? E se em vez de cineastas tivéssemos diretores de cinema? E se os políticos eleitos cumprissem o que prometeram? E se o mar virasse sertão? E se você fosse a pessoa mais famosa do Brasil? E se não houvessem drogas? E se você ganhasse milhões na Mega Sena? E se você fosse o Brad Pitt? E se você fosse índio? E se Cristo voltasse glorioso, julgando os vivos e os mortos? E se os operários do mundo se unissem? E se todos acreditassem no Credo? E se você soubesse que iria morrer dentro de duas horas? E se Pedro Álvares Cabral tivesse descoberto a Argentina? E se você tivesse morado na Montanha Mágica?

E se seu pai voltasse do túmulo? E se os bichos falassem? E se houvesse pão para os pobres? E se a Revolução Russa tivesse ocorrido da Alemanha? E se a ópera não tivesse sido inventada? E se Machado de Assis fosse alto, branco e tivesse nascido num palacete? E se você não tivesse assistido ao filme Cantando na Chuva? E se D. João VI não tivesse vindo para o Brasil? E se falássemos holandês? E se você tivesse tido uma governanta francesa? E se você tivesse escrito Grande Sertão, Veredas? E se tivéssemos tomado o Pão de Açúcar com café com leite? E se Hitler tivesse sido um bom arquiteto? E se não existisse esquerda e direita? E se deixássemos de mentir? E se não tivéssemos futebol? E se o Lula não tivesse sido eleito? E se os espíritos se manifestassem em massa?

E se os intelectuais fossem a praia em vez de beber? E se não tivesse havido o golpe? E se você soubesse onde mora a felicidade? E se fôssemos todos bonitos, inteligentes e podres de rico? E se todos os bandidos fossem presos? E se o Papa doasse o Vaticano? E se em vez de três, você tivesse dez filhos? E se não falássemos a mesma língua? E se você fosse um deficiente físico? E se não tivéssemos praia e pastel? E se não tivéssemos tido escravidão? E se não existisse poesia? E se você pintasse como o Pancetti? E se você fosse mais comunista que o Prestes?

E se não tivesse existido hiperinflação? E se todos obedecessem aos sinais? E se ninguém falasse nome feio? Se não existisse guerra? Ou malandragem? E se o Olavo Bilac aparecesse no programa do Faustão? E se você tivesse descoberto a Pasárgada? E se não existisse violência? E se você fosse poliglota? E se o amor acabasse? E se não sonhássemos? E se ninguém morresse? E se você fosse burro? E se Freud não tivesse nascido? E se não tivéssemos dívidas? E se todos fôssemos lúcidos? E se não existisse o ´se´?

Respondendo a metade, você vira ´filosofo´. Deixando todas as questões sem réplica, você continua normal. Agora, se você jamais pensou em nenhuma delas, és - como diria Kipling - um idiota, meu filho.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O Declínio do Império Americano

Aquelas pessoas que gostam de pôr siglas em tudo podem ficar contentes, inventei uma nova. Trata-se do D.I.A., sigla para Declínio do Império Americano, que por ser extenso demais no nome, necessita ser abreviado. Ainda mais agora, que a expressão entrará na moda jornalística, e será repetida aos quatro cantos com uma musiquinha de fundo: "China é a Salvação!". A imprensa já iniciou seu programa anti-americanista, anti-imperialista, coisa que não entendi muito bem. Como se pode ver, a mídia internacional é muito i-de-o-ló-gi-ca.

Ficamos anos e anos com uma garrafa de coca-cola no relicário e na geladeira, e agora vamos renegar todos os americanismos em nome de uma nova ordem internacional. Já está tudo marcado: a crise é o princípio do fim. Fiquei sabendo que já há escolas americanas sem saber o que ensinar nas escolas, e o material didático terá que ser totalmente reformulado. "Como assim, não somos mais os donos do mundo?" Ok, ok, vamos raciocinar.

Tem um lado bom de tudo mudar? Sim, ao meu ver, os EUA poderão a partir de agora, olhar toda a América como sua irmã gêmea, parida sob as mesmas condições e na mesma época, e não mais como a irmã bastarda, prostituta, que se coloca no canto do quarto e se finge esquecer... Há americanos inteligentíssimos, muitos, pessoas legais, alegres, humildes, pessoas comuns, seres humanos de carne e osso, e não hambúrguer e donuts.

Esses últimos anos foram difíceis. Não é fácil para uma geração tornar-se adulta com George W. Bush no poder. E vejam só, as coisas mudam tão rápido que uma nova geração crescerá vendo a China no topo. Fico imaginando aqueles cursos de mandarim pra tudo quanto é lado no Rio de Janeiro, internet com ideogramas, será engraçado.

Outra Guerra Fria? Pode ser, mas será bem fria mesmo, porque a galera parece que não anda muito disposta a guerrear, parece meio cansativo. Presidir grandes corporações, explorar e engordar parece mais interessante do que matar por ideologias. E nessa altura do campeonato, que ideologias? O muro caiu, o império americano desmorona, e vou deixar a melhor dica da década. Abra sua loja China in Box. O yakisoba é o novo big mac.

(Guilherme de Carvalho)

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Por que Calcanhotto?

A política anda chata. É só passar a época de eleições que tudo volta ao marasmo. Longe de Brasília, nós ficamos sem saber as verdades, porque a Globo conta o que quer contar. Temos que ficar fuçando as notícias na internet, em blogs de fascistas, procurando aquela verdade boa de ser repassada. Portanto, politicamente não tenho novidades. Deu-me vontade de falar de Adriana Calcanhotto. E por que a gauchinha?

Na verdade, não é por que ela. Mas, por que não Maria Rita, Marisa Monte e Ana Carolina? Bem, para começar, Maria Rita nem conta, é só um fenômeno publicitário do ponto de vista de lá para cá, e psicológico, de cá para lá, no sentido de que ficou famosa enquanto não digeríamos a morte de sua mãe. Sua voz não tem a menor chance de ser comparada com a de Elis. Maria Rita é chata, pedante, tem um grito esgarçado que tenta copiar e colar de sua progenitora. Faz mal os vocais quando acompanha alguém. Dá pra ouvir o zombido irritante ao final de "Rodo Cotidiano", no Acústico MTV d'O Rappa. Não sei como o Falcão agüentou. Maria Rita é o tipo de artista que usa o passaporte para fazer show no Japão. Lá, eles pagam bem, mas não entendem nada de qualidade musical ( Desculpa!).


Marisa Monte é até mediana. Pupila de Nelson Motta, outro imbecil, ficou famosa com "Bem que se quis", uma das canções mais bobas e bregas da MPB. Agora, Marisa paga pau de sambista da Lapa, mas já cantou "Amor, I love you", que, convenhamos, é uma pérola do mau gosto. O projeto Tribalistas, a meu ver, é um primor, uma exceção. Em todos os quesitos é perfeito. Um disco onde as letras são populares e refinadas, os instrumentos não-convencionais bem colocados, a percussão e vocais na medida certa, enfim, tudo foi extremamente pensado por gente que entende mesmo de produção musical. Mas nem assim Marisa deixou aquela voz melosa que penetra em seu ouvido da pior maneira possível. Também pedante, não gosta dos fãs, mas ela não é o João Gilberto para ter essa atitude desprezível. Sei que muita gente vai me descascar, mas democracia é democracia. Pra completar, a revista Rolling Stones afirmou que Marisa é, atualmente, a melhor cantora brasileira. Tem louco pra tudo.


Deixei o melhor pro final. Ana Carolina. Por que ela grita o tempo inteiro? É pra mostrar que tem potência vocal? Ela já não é famosa? Por que falar de cinco em cinco minutos que é bissexual? Por que gravar "Eu comi a Madonna" e "Cristo de Madeira"? Por quê? Por quê? São as perguntas que eu deixo.


Agora, Adriana Calcanhotto é de longe a melhor cantora brasileira. Suas escolhas de canções são excelentes. O violão parece ter nascido junto a ela, feito siameses, e sua voz uma extensão da última corda, sublime. Calcanhotto teve a decência de gravar a música de Fagner para o lindo poema chamado "Traduzir-se", de Ferreira Gullar. Gravou "Inverno", musicado em cima do poema de Antonio Cícero. Mais, ela não sofre de desafinação crônica, e suas declarações são sempre lúcidas. Calcanhotto é simpática, verdadeiramente culta, revelou-se excelente escritora recentemente, enfim, é artisticamente a mais competente entre as citadas e as não-citadas. E cá entre nós, é também um chuchuzinho (hehehe). Deixo esta crônica com a letra magnânime de "Inverno", certamente uma das músicas mais bonitas da MPB. Mas, tudo isto, é opinião.


Inverno

Adriana Calcanhotto, Antonio Cicero
in: A Fábrica do Poema 04:39
in: Público (DVD)

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu:
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
Que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
Reuniu-se a terra um instante por nós dois
Pouco antes do Ocidente se assombrar

© Editora Minha Música

(Guilherme de Carvalho)

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Dadão de Bangu

Vou escrever algo socialmente reduntante: Dado Dolabella é um imbecil. Primeiro (talvez), foi o episódio com João Gordo na MTV. Pra quem não lembra, não custa nada recordar. Dado levou uma maleta que continha um machado e uma corrente ao programa de João e quebrou a mesa, numa demonstração babaca de sua imbecilidade retumbante. Agora é "acusado" (ô lei ruim), de ter agredido sua ex-noiva Luana Piovani e a tal de Esmê, uma pobre senhora.

Pensemos: Dado Dolabella é um fato isolado? Não, claro que não. Ele somente faz parte da classe de playboys mimados, nascidos no berço da transição democrática, que não tinham nada no qual se preocupar enquanto a economia se estabilizava. Dado nasceu em berço de ouro, de uma mãe artisticamente irrisória, que em toda a sua vida trabalhou menos do que Luana Piovani em 32 anos. Seu pai até que trabalhou mais, mas era preso a um tipo de personagem, machão e putão. Coincidência? Talvez.

Nunca fui fã de Luana, nem nunca a achei a mais bonita das mulheres. Seu blog é teen. Ela parece uma menininha de 14 anos, talvez seja, e essa é a sua beleza. Pensemos: Luana jamais se casou, não tem filhos, teve muitos namorados, mas tudo isso para desaguar numa situação como essa, de denúncia. Tivesse ela não sido essa "doidinha", teria fatalmente se calado, casado e apanhado outras inúmeras vezes. Obrigado Luana, por dar o exemplo.

Quero que Dado vá para a cadeia, seja namoradinha de preso, chacota, que veja que há presos mais cantores e atores que ele, mais malvados e mais temidos. O Dado queria ser Dadinho, Zé Pequeno, mas agora ele será o Dadão de Bangu.

***
Pérola de Dado: "Isso é coisa nossa, não era para ter tomado essa proporção". Já dizia o Cobrador de Rubem Fonseca, "só rindo".

(Guilherme de Carvalho - 06/11/2008)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Brasil: pintura de Dalí


O Brasil é surreal, eu já disse isto aqui noutra crônica. Certa vez o cantor Tim Maia lançou a máxima: "o Brasil é o único país onde pobre é de direita." E posso acrescentar: o Brasil é o único país onde pobre, preto e judeu são de direita. Talvez não o único, mas com certeza com uma singular modalidade.

O Brasil é um país onde rico se diz "social-democrata", vota no PSDB e DEM e acha que pobre é preguiçoso. Mas acha legal Restaurante Popular porque o Estado tem que agir de alguma forma na pobreza. É um país onde ter uma ideologia significa torcer para um time da primeira divisão, e onde os únicos partidos que quebram o pau na rua são as torcidas organizadas. É um país onde DJ Saddam é comunista e candidato a vereador pelo PCdoB, mas Oscar Niemeyer é a versão masculina de Dercy Gonçalves. É um país onde ser de direita é moda, ser de centro é moda, ser de esquerda é moda, mas gostar de micareta e rave são preferências musicais. É um lugar onde Tom Zé é gênio e Chico Buarque, chato pra cacete. É um país onde o povo é sempre oposição: Collor é um merda, FHC um merda, Lula menos que merda, mas Aécio Neves, ah!, esse tem tudo pra mudar as coisas.

O Brasil é um país onde Ministério da Educação é coisa séria, mas o do Meio Ambiente é só uma piada. É um país onde se acha que o projeto das usinas de Angra dos Reis foram feitos para "suprir" a malha de energia. É um país onde pobre compra Tropa de Elite e acha o Cap. Nascimento um puta dum herói. É um país onde aprovação automática é o fim da picada, mas reprovação automática nem existe, porque pobre é burro mesmo. É um país onde filhos de um banqueiro multimilionário pedem patrocínio para seus filmes. É um país onde a Cultura não detém nem 1% do orçamento. É um lugar onde padre é comunista e favelado é protestante.

O Brasil é um país onde prostituta, travesti e homossexual em geral são o mal da nação, mas Clodovil é eleito com recorde. É um país onde se acredita que AIDS só se pega de gay, mas se o seu pai aparecer com a doença ele é apenas um machão sem sorte. É um país onde o aborto é um absurdo, mas se a sua filha adolescente engravidar, Deus perdoa um abortinho. É um país onde Nossa Senhora é Aparecida, mas criança sumindo faz parte do sistema internacional de pedofilia, coisa normal! É um país onde o partido de esquerda mais radical não é o PSTU nem o PCO, mas o Comando Vermelho, que desistiu de discutir e foi para a "práxis" há três décadas. É um país onde Olavo de Carvalho (vide google; e não é meu parente) é um intelectual importante, mas Lula é só um semi-analfabeto boçalóide.

Enfim, dá ou não para achar que Salvador Dalí pintou essa merda aqui?

(Guilherme de Carvalho - 04/11/2008)

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Socialismo remoto


Por esses dias, estive tentando lembrar qual havia sido o meu pensamento mais remoto do que eu viria a saber que tem o nome de socialismo. Costumo recordar que na adolescência, conversando com amigos, chegávamos sempre à conclusão de que algo estava muito errado no mundo. Que não fazia sentido comer até se empanturrar no Bibi Sucos do Leblon e ver mendigos famintos. Não tínhamos feito nada a mais do que ninguém para merecer mais ou menos, nem nossos pais.
Ontem, lembrei de um fato singularíssimo. De 1995 a 2003, estudei num colégio católico chamado Colégio Nossa Senhora da Piedade. Irônico, não?! Lá, o pátio é enorme, possui algumas árvores, uma cantina embutida, pilastras de pedra grandes, e uma, uma só mesa. Tal mesa era objeto de vista e de pensamento, dado que eu a olhava incessamente, tentando entender por que quem descia primeiro para o recreio podia sentar nela, e quem chegava depois tinha de comer no chão, com a sua lancheirinha encostada na sujeira dos pombos católicos.
O socialismo é um pensamento tão básico (quando não tentam complexificá-lo desnecessariamente), que até uma criança do primário pode entender que todos deveriam comer na mesa, ter a mochila de carrinho e o tênis que liga a luzinha. Se todos os esquerdistas passassem a olhar a causa com olhos pueris, talvez começariam a parar de criar mais ramificações de nomes de pensadores mais "ismos" acrescentados ao final da palavra. É preciso olhar a causa, não como emissão do intelecto, mas como reação à desigualdade. Como demonstração da força social, e não como base partidária.
E continuo a ver aquela mesa, à minha frente, na memória... E em toda parte...

(Guilherme de Carvalho - 03/11/2008)