sábado, 6 de dezembro de 2008

Um estrangeiro

Que vontade de sair andando por aí com Dostoievski, em russo, debaixo do braço, para que perguntem: você sabe russo? Ah, sei ler um pouco. Todo mundo iria ficar com aquela carinha de bunda como quem diz “nossa, que culto.” Mas eu explicaria: entendo russo porque meu pai era militante do partido comunista e foi ajudá-los no desmonte do regime em 1991, e lá morei até 1996. Fui alfabetizado nas duas línguas. Seria engraçado, eu riria por dentro.

Ler húngaro, talvez. Depois de ler Budapeste, do Chico Buarque, você quer mesmo é aprender húngaro e escrever um poema no corpo da amada. Ver o país pelo Google Earth não é a mesma coisa que visitá-lo. Que autor eu leria em húngaro? Não conheço nenhum. Quem aprende húngaro lê tcheco, ou não tem nada a ver? Porque senão dá pra ler o Kafka. Daí eu poderei andar com O Processo e dizer que leio tcheco através do húngaro, mas que acho russo mais difícil.

Aprender francês para ler O Estrangeiro, de Camus, parece ser uma escolha acertada (quando digo aprender, quero dizer carregar o livro). Será que o sr. Mersault é o mesmo em todas as línguas? O sol do livro é mais quente quando se mora no Brasil? E se eu souber espanhol? Será que o García Márquez me fará chorar de novo, ou a tradução do Eric Nepomuceno é que me trazia as lágrimas?

Juro. Se aprendo o espanhol, parto para o basco, que é a língua dos sonhos de qualquer louco. Não, não conheço nenhum autor basco, mas posso procurar. Ou mandar fazer uma camisa escrita “eskerrik asko”, “ez dago zergatik”, que simplesmente significa (juro), respectivamente, “muito obrigado” e “de nada”. Se me perguntarem o que está escrito, mudo de assunto. Posso afirmar que são dizeres de uma seita secreta e que se eu disser, a pessoa corre risco de vida.

Mas a pior de todas as hipóteses é: o que não consigo ler mesmo, não importa o esforço, é o tal do Guimarães Rosa. Que língua secreta é mesmo essa em que ele se debruça? Húngaro? Russo? Romeno? Disseram-me que é português, português de verdade. A partir daí o que fica claro é que não sei a minha própria língua. Não falo língua nenhuma. Entro num shopping e falo inglês, aprendi com os filmes. Mas no caixa, com a menina e a registradora, sai um som estranho da minha boca. Sou culto, carrego livros, não os leio, ligo o computador e a internet e não estou perdido. Mas aquela Gramática do Português, ainda não decifrei. Não sei que língua falo. Sou um estrangeiro em minha língua. Mas já estou me parecendo com o sr. Mersault, e essa é outra história...
(Guilherme de Carvalho)

3 comentários:

Guto Pina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Guto Pina disse...

Budapeste é muito bom.
Não imagino nada de ruim que venha do Chico.
Bom texto.
Estudando os chipanzés com a Zinda você vai aprender a Gramática rapidinho rapaz.
rs
Abraços

Aninha Barth disse...

"o que não consigo ler mesmo, não importa o esforço, é o tal do Guimarães Rosa. Que língua secreta é mesmo essa em que ele se debruça? Húngaro?"

AHAHAHAHA Adoro teu senso de humor! É, realmente, esse é um ponto comum nosso. Mas acho que não é difícil ser comum a muitas outras pessoas! Rs

Beijo